A solenidade com que alguns militares agregados na Associação 25 de Abril se apresentaram agora a defender, quase 40 anos depois, um modelo político de organização do Estado diferente do escolhido pelo povo, apenas confirma o que já se suspeitava.
O 25 de Abril foi um golpe de Estado promovido por um grupo de militares que se sentiram ameaçados em duas frentes: a primeira pela desvalorização da carreira profissional em consequência da rápida ascenção dos milicianos a postos de comando antes apenas assessíveis aos militares oriundos das academias, a segunda pela tendência de intensificação das mobilizações, cada vez mais frequentes, para teatros de guerra.
Em concreto: os militares que fizeram o golpe de Estado estavam a ser obrigados a «trabalhar» mais, com uma vida limitada a instrução na metrópole e guerra nas províncias ultramarinas, estavam fartos de guerra e da instabilidade de vida pessoal e, ainda por cima, corriam o risco de perder uma boa parte dos privilégios sociais que julgavam imanentes da condição militar.
Fizeram o golpe de Estado para preservar e melhorar a sua condição pessoal perante o poder político constituido e a sociedade e não para mudar de regime ou sistema político.
Neste particular, será curioso confrontar o golpe do 25 de Abril de 1974 com o golpe do 28 de Maio de 1926.
No primeiro, a génese da revolta é egoista e ociosa porque alheia a qualquer carência de organização social ou estruturação do Estado enquanto no segundo caso, como muito bem assinalou em 1928 Fernando Pessoa, na sua Defesa e Justificação da Ditadura militar, as forças armadas intervieram no cumprimento do seu dever de acabar com o impasse da sociedade, e garantir a função primordial do Estado que é estabelecer a Ordem e uma autoridade com competência para a executar, criando assim condições de vida dos cidadãos e do funcionamento das instituições, ou seja do Estado.
É evidente que muitas peripécias se desenvolveram após o golpe do 25 de Abril, designadamente, por um lado, com a fácil infiltração dos movimentos políticos que, por impulso exterior, apenas pretendiam substituir-se no topo da hierarquia da organização política para cumprir objectivos alheios e internacionalistas e, por outros lado, e como reacção a essa tentativa conservadora dos partidos comunistas, a reposição de uma ordem diferente, assente na expressão livre da vontade popular, isto é, a fixação de um sistema democrático.
Mas esta evolução, sendo estranha aos militares que organizaram o golpe do 25 de Abril, criou uma dinâmica revolucionária que se prolongou no tempo e que, vencidas as primeiras tentativas de travar a restituição do exercício do poder ao povo, haveria de culminar no afastamento dos revoltosos para a sua função exclusiva de garantes da Ordem, e entrega das funções de organização do Estado e funcionamento da sociedade, segundo os modelos exclusivamente por ele escolhidos, ao único titular legítimo do poder político: o povo.
Devolvido o poder, não é compreensível sobre quais os restos dele os militares se julgam donos.
Não se percebe, passados tantos anos de estabilidade democrática, como é que aqueles militares agregados numa qualquer associação, ainda se julguem titulares, ou, pelo menos, com direitos especiais sobre o sistema político português, isto é sobre o Estado, ou melhor, sobre o povo, sem se sujeitarem ao voto popular, alheios ao juizo e às opções do povo.
Estão remotos os tempos de Fernando Pessoa e das circunstâncias sociais que o levaram a defender a pertinência e a permanência da ditadura militar estabelecida em 28 de Maio de 1926 .
E já ninguém adere aos ideais do Partido Comunista que, julgando-se a vanguarda de uma classe titular, exclusiva e exclusivista de poderes naturais, conferidos por um proceso evoluconista que lhe terá sido benéfica, de organização e comando da sociedade, continua a defender os efeitos maléficos de um modelo político assente em eleições gerais e sufrágio universal, isto é, determinado pela vontade periodicamente e livremente expressa por todo o povo.
Por isso, parece tempo de os chamados militares de Abril se conformarem à democracia e, se se acham aptos a participar politicamente e disso têm vontade, só têm um caminho que lhes garanta o prestígio doutros tempos e a dignidade pessoal, profissional e política: renunciar aos privilégios de há 40 anos, usar os mecanismos democráticos de intervenção política, apresentar- se perante o povo, mostrar os seus reais ideiais, sujeitar-se ao voto popular, e, se o povo os quiser na política e os escolher, combater com as suas ideias nas instituições, em particular no único orgão que representa todo o povo, na Assembleia da República.
Fora disto, revelam sinais de que a doutrina de Pinochet está activa em Portugal mas, pela sua impreparação e impotência, apenas mostram infelizes e ociosas frustrações de tentação totalitária.
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